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PERDÃO PARA O PECADOR!
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Federico Fellini...
A Doce Vida é, sem dúvida, o cartão de visita do grande mestre italiano Federico Fellini. É também um finíssimo clássico que influenciou uma geração inteira de novos cineastas. E o é, não porque o roteiro, realizado a oito mãos (Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli e Brunello Rondi) e provavelmente, por uma cabeça (a de Fellini!), seja um primor; e/ou como dizem os críticos, seja enxuto. É evidente que não. Muitos criticam aqui e ali a saga do personagem principal, com seus vai-e-vem, que no final não o leva a lugar nenhum. Além de ser notório o fato de o filme ter um tempo considerado demasiadamente longo. É o cartão de visita de Fellini e é um clássico porque é um filme com a marca Fellini, com o jeito Fellini de ser ou de ver as coisas. O filme é realmente longo e lento, mas o é, assim como são quase todos os outros trabalhos de Fellini, porque são de cunho bem pessoal; por isso mesmo os filmes do mestre italiano não são para todos os gostos. Portanto, gostar do filme ou não, aceitar sua importância ou não, etc; é uma questão muito pessoal, assim como é a própria obra do mestre, muito pessoal. Fico muito a vontade em falar isto porque por muitos anos detestei qualquer coisa que se referisse a este questionador revolucionário da moral e do bom costume da sociedade. Que preconceito, não? Julgar e condenar alguém por ouvir dizer, sem nenhuma chance de defesa. Porém, um dia (e este dia sempre chega, ou deveria chegar!), resolvi dar a chance de defesa a este blasfemador da sociedade. E permiti que tivesse direito a palavra esta tal de A Doce Vida! E ao final, constatei seus defeitos e suas virtudes e pesei na balança o impacto do mundo felliniano em meus conceitos, tanto da sociedade (já que é um filme instigante e até amoral) como cinematográfico (pois um cinema convencional de um bom contador de história como John Ford sempre foi muito forte em mim); e concluí que o bicho não era tão feio assim, e que em muitos aspectos era até simpático, porque não dizer, atraente, adorável! Mas a coisa não foi tão rápida assim. Não foi amor à primeira vista! Depois que assisti ao filme fiquei com aquela pergunta presa na garganta: E daí? É só isso (mesmo o filme sendo demasiadamente longo, como já dissemos e o é, de verdade), a história não vai continuar? É lógico que ficar atirando pedras ao vento não iria resolver meus problemas, nem responder aos meus questionamentos. Ou me decidia a conhecer o mundo de Fellini ou abandonava a questão de vez. Então decidi assistir ao filme novamente, depois uma terceira vez e até uma quarta. Em seguida assisti a outros filmes do mestre e logo li alguma coisa (na verdade li o que pude!) sobre ele. E ao final (repito), de toda esta paquera, esta troca de intimidades e quebra de preconceitos; pude admitir o mundo felliniano em minha vida, a minha mortal vida, de um simples cinéfilo (se é que posso me classificar assim). Descobri que a obra de Fellini é para o meu gosto sim (!), mesmo que alguns filmes e algumas passagens não sejam totalmente do meu agrado. Porém, só gostamos daquilo que conhecemos ou para dizer que detestamos alguma coisa, devemos conhecer também. Recomendo que procurem conhecê-lo. Talvez a obra, ou pelo menos um filme do mestre, seja do seu agrado, seja do seu gosto. Não fique na primeira impressão, pois esta é por demais traiçoeira. E compreenda que nem tudo é perfeito, as coisas são como são; é pegar ou largar, diz o ditado. Bem, mas chega de lero-lero e vamos ao filme.
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A Doce Vida.
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No universo felliniano caminha Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), que é um jornalista que sobrevive em escrever fofocas para os tablóides sensacionalistas. Enquanto seu andar percorre as ruas de Roma, seu coração comprimido num peito apertado, sobrevive entre uma batida e outra, na esperança e no anseio de uma vida melhor. Como tantos, é um escritor medíocre, que normalmente consegue escrever o suficiente para viver (sobreviver?). Como ele gostaria de ser um escritor sério e ser reconhecido como tal! Como gostaria! Mas sua índole leviana e sua vida frívola não lhe permitem redirecionar a sua vida por um caminho mais sério e uma concepção literária mais profunda. Nesta guerra entre seu desejo de ser um homem diferente, novo (!); e sua fraqueza de caráter que o carrega para o seu cotidiano, Marcello "acorda" de seus pensamentos e se vê frente a uma boate luminosa, barulhenta e pecadora. Entra e ali conhece uma herdeira rica, Maddalena (Anouk Aimée), que sofre por sentir um enorme tédio, pois tudo a chateia, e ela constantemente está à procura de novas excitações. Não demora muito e todos os pensamentos de anseio de um homem novo ficam à beira da calçada, lá fora, jogados ao chão sem dono e sem um motivo de ser ou existir. Quando retorna para casa, encontra sua amante do momento, Emma (Yvonne Furneaux), que tinha tomado uma overdose de pílulas para dormir. Marcello se apressa em levá-la até o hospital e fica seguro e aliviado ao constatar que Emma se recuperará, apesar dela estar ainda muito deprimida. Mas é necessário trabalhar para viver e Marcello então corre para cobrir no aeroporto a vinda de Sylvia Rank (Anita Ekberg), uma nova atriz de Hollywood. Logo Marcello esquece-se de Maddalena e Emma e fascinado pela beleza da atriz, despeja todo o seu charme, ficando mais íntimo de Sylvia, que aceita com a maior tranqüilidade todo o seu assédio. Assim percorrem juntos os pontos turísticos da cidade, como a Praça de São Pedro, as Termas de Caracalla e a Fonte de Trevi, onde ela resolve tomar um banho com roupa e tudo, enquanto Marcello tenta achar leite para um gatinho, que Sylvia havia recolhido na rua. Ao retornar, Marcello vê Sylvia se banhando e se deslumbra, principalmente quando ela o convida para tomar banho com ele. Mas ao voltarem da fonte a situação fica desagradável, pois Robert (Lex Barker), o noivo de Sylvia, enciumado, a esbofeteia e faz o mesmo com Marcello, que não revida. Revidar para quê? Como contraponto, (a história deixa esta marca, talvez como questionamento), eis que surge Nossa Senhora a duas crianças, e de outro lado, um duplo homicídio e um amigo de Marcello que resolve partir para o combinado (como diz um fulano que aprecio muitíssimo) antes da hora marcada. Tudo isso ao som da bela trilha sonora de Nino Rota.
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Esta é a vidinha do personagem da história e este, o filme, é uma grande obra-prima do mestre Federico Fellini e também um dos maiores e mais lembrado e reverenciado filme da história do cinema. Porém, quando foi lançado, o filme causou muita polêmica entre os mais conservadores, sendo que um cartaz foi colocado na porta de uma igreja dizendo: Rezamos pela salvação da alma de Federico Fellini, notório pecador. Contudo os fiéis não deixavam de ter razão! A influência negativa que uma história banal e amoral poderia ter sobre os incautos romanos era para ser combatido e a ferro e fogo, se fosse preciso. Evidentemente, pois o filme pode e deve ter influenciado a sociedade em aspectos negativos. Mas com certeza, pode e deve ter influenciado a sociedade sob os aspectos positivos também. E um dos aspectos positivos é justamente mostrar a degradação social da Itália de então. A obra de Fellini queria de certa forma mostrar o que estava errado para ser valorizado o que estava certo e o que era correto. Mesmo que a intenção não fosse explícita, mas acabava funcionando como um alerta. Ou então, Fellini queria simplesmente mostrar o jeito meio na contramão (perdido mesmo) de viver. Não de toda a sociedade, é claro. Mas de alguns que viviam aquilo que ele definiu como La Dolce Vita. Psicologicamente, socialmente e moralmente, a obra do grande mestre italiano oferece muitas interpretações e, no entanto, nenhuma conclusão definitiva. Um gênio, este Fellini, diriam alguns; um gênio do mal, diriam outros.
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Podemos concluir que A Doce Vida é uma sátira implacável da sociedade italiana ao final da década de 50. Fellini, porém, viria a causar muita mais polêmica ainda em seus próximos filmes: com uma filmografia intensa e pessoal, arraigada na crítica social, na estética e uma imaginação surrealista, o grande mestre italiano passou pela história como um dos criadores mais originais e influentes do cinema. Com Otto e Mezzo (1963) satiriza a si mesmo, em Giulietta Degli Spiriti (1965) mostra um mundo de fantasias e alucinações, com Satyricon (1969) Fellini se supera contando as aventuras de dois bissexuais no mundo pré-cristão cheios de personagens grotescos e imagens oníricas de nudez, sexo e violência. Em 1972 viria novamente a dissecar a cidade romana no seu magnífico Roma, e isto apenas para dar uma idéia do gênio de Fellini. Uma alma e um gênio perturbador este Fellini. No entanto, as mesmas obras que perturbam, são também grandes e magníficas obras. Gênio não se explica!
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Não dá para falar de um filme de Fellini sem falar em seu criador, de tão pessoal e, em muitos casos, autobiográficos, que são. E A Doce Vida é um pouco da inquietude do homem quanto ao meio em que vive e também de suas lembranças, da sua própria imagem no meio deste mundo e a sua repulsa e o seu amor a este mesmo mundo. Por isso o filme se estica demais, porque não quer mesmo chegar ao fim, ao mesmo tempo em que não chega à meta alguma, porque não está comprometido com isto. Quer apenas e tão somente grifar um momento na vida agitada da cidade, e tudo é tão passageiro e nada, necessariamente, precisa ser explicado. Apenas uma vida que passa, numa cidade, num tempo perdido no próprio tempo chamado de La Dolce Vita.
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